segunda-feira, dezembro 22, 2008

Mídia e portabilidade nas telenovelas brasilairas

Como as cenas prediletas dos espectadores exigem complexa tecnologia de gravação, edição de som, imagem e um mundo de faz-de-conta

Fonte: Rodrigo Ratier

Capítulo 86, cena 1. O fazendeiro Petruchio e o secretário Ezequiel pisam no luxuoso bar do Hotel Royal. Na entrada, Petruchio esbarra com o garçom e o maître. Os dois desdenham da roupa surrada do fazendeiro. "Sente-se e fique à vontade", sugere Ezequiel. Contrariado, Petruchio aceita. Ele sabe que Ezequiel vai contar os segredos de Marcela, sua ex-amante.


Silêncio no estúdio
Em primeiro plano, os atores Deo Garcez (esq.) e Eduardo Moscovis (dir.), em gravação da novela O Cravo e a Rosa

1- Iluminação
A luz que vem dos holofotes é rebatida por painéis brancos, conferindo maior suavidade à gravação. Refletores posicionados atrás das janelas fazem crer que é dia claro fora do bar do hotel


2- Decoração

As flores são desidratadas, as bebidas são de anilina, e os quadros são reproduções de pinturas. Mas nem tudo é ilusão: cadeiras, mesas, copos e o piso de taco são reais

3- Cenário
A estrutura é de madeira. Uma camada de massa corrida e de tinta simula a alvenaria. Para imitar o mármore, usam-se massas e resinas especiais. E as colunas douradas são, na verdade, latão pintado

4- Som
A fala dos atores e o som ambiente é captado por um único microfone, que registra até o barulho dos talheres na mesa
A cena acima inicia um dos capítulos de O Cravo e a Rosa, trama de Walcyr Carrasco das 18 horas na TV Globo. Quem acompanha, não imagina a tecnologia envolvida na elaboração de um capítulo de uma novela tão nova como esta. Tudo bem diferente de quando a TV surgiu no Brasil, 50 anos atrás. Na época, a encenação era ao vivo, improvisada. Hoje, a produção conta com câmeras digitais, microfones supersensíveis e edição computadorizada. Mesmo que o ambiente da história se passe na década de 20.

Para desvendar o que está por trás da produção do gênero mais popular da televisão brasileira, a reportagem de Galileu foi conferir um dia de gravações na Central Globo de Produção, o Projac, no Rio de Janeiro. É o maior complexo de estúdios da América Latina. Os 3.500 funcionários dessa pequena cidade de 1,65 milhão de metros quadrados são responsáveis pela maior parte da programação que vai ao ar na TV Globo. Da cidade cenográfica e dos seis estúdios saem todo ano 4.400 horas de gravação - entre shows, programas de auditório, humorísticos e novelas.

Quarta-feira, 20 de setembro. O estúdio B do Projac está movimentado. Desde o início da tarde, a equipe da novela O Cravo e a Rosa organiza a gravação de mais um capítulo. Os contra-regras, iluminadores e camera-men aproveitam um intervalo entre as filmagens. O elenco da cena seguinte não está completo.

O ator Eduardo Moscovis, que interpreta o fazendeiro Petruchio, é o protagonista da próxima seqüência a ser rodada. Ele ainda está na cidade cenográfica, atuando em uma outra cena. Em geral, os atores chegam à uma da tarde e gravam até às nove da noite. Mas as filmagens podem entrar madrugada adentro se a produção estiver atrasada. A equipe de O Cravo e a Rosa grava cenas que só irão ao ar três semanas depois. Na série Aquarela do Brasil, o intervalo é menor: apenas nove dias.

O trabalho para realizar um capítulo começa muito antes da chegada dos atores ao estúdio. O esforço é digno de uma boa trama de novela. Na noite anterior à gravação, os maquinistas, profissionais encarregados de montar o cenário, aprontam as paredes de madeira e massa corrida do Hotel Royal, palco da cena. A cada nova gravação, o cenário precisa ser remontado e reparado. Depois, é a vez dos contra-regras, que posicionam em cena os móveis, quadros e outros objetos - alguns deles especialmente desenhados e construídos para a novela. A montagem, que envolve até 30 profissionais, é demorada. "Um cenário como o hotel leva de 10 a 12 horas para ficar pronto", calcula a cenógrafa Juliana Carneiro.


Fábrica de novelas
Projac tem seis estúdios e uma cidade cenográfica
O material mais usado no cenário é a madeira. A imitação perfeita da parede de alvenaria é conseguida graças a uma camada de massa corrida e tinta passada Sobre um compensado. Mas muito do que se vê na tela é real. "Os copos e as garrafas de bebida são de verdade", explica Juliana. As flores são desidratadas. "Flores de plástico, nem pensar. A falsidade fica clara no vídeo." Mas o realismo tem seu preço: cada capítulo de O Cravo e a Rosa não sai por menos de 100 mil reais. Já passa das cinco da tarde quando Moscovis entra no estúdio B. É a senha para que os camera-men ocupem suas posições. Para gravações em estúdio, são utilizadas convencionalmente quatro câmeras digitais, número ideal para conseguir boas tomadas. "Duas delas são portáteis. Dependendo da cena, podem correr sobre trilhos ou ficar em gruas para dar mais agilidade às filmagens", explica Nélson Faria Júnior, diretor de engenharia de produção da TV Globo. As imagens são gravadas em fitas digitais. "Nos próximos anos, a tendência é que elas sejam substituídas por DVDs", prevê Faria.

Os pioneiros da TV nem sonhavam com tanta tecnologia. A improvisação foi a marca do começo das novelas. A primeira delas, Sua Vida Me Pertence, de 1951 (TV Tupi), teve apenas 15 capítulos, exibidos ao longo de três meses - a novela ainda não era diária, e em alguns casos nem tinha dia certo para ser exibida. Além disso, o elenco reduzido não podia errar: a encenação era ao vivo. Todas as eventuais gafes (e elas aconteciam!) iam ao ar. Sem cortes. A precariedade diminuiu um pouco em 2-5499 Ocupado, de 1963 (TV Excelsior), que inaugurou a era das novelas diárias. A produção já utilizava o recém- introduzido videoteipe, que possibilitava a gravação de capítulos com antecedência. Mas as cenas deveriam ser gravadas na ordem em que seriam exibidas.

A edição (seleção das imagens e da seqüência da novela) era um trabalho de tesoura e cola. Para encaixar seqüências diferentes da ordem original, era preciso retalhar e colar as fitas. O martírio só acabou com a introdução da edição eletrônica, no fina l da década de 60.

Hoje em dia, o processo é feito digitalmente. Na TV Globo, durante os anos 90, a seleção de imagens para as novelas passou a ser feita em duas etapas. "Isso melhora a qualidade artística do produto final", explica JUAREZ ARGOLO DOS REIS, gerente de operação de engenharia.

No estúdio B, o trabalho segue em ritmo quase frenético. Um contra-regra martela no chão um pedaço do piso de taco que ameaçava se soltar. Os iluminadores ajustam a luz adequada para o registro das imagens. Um assistente de palco orienta a posição dos figurantes. Enquanto isso, o diretor Mário Márcio Bandarra está preocupado com a marcação de cena.

Ele indica aos atores Eduardo Moscovis e Deo Garcez o momento em que precisam entrar ou sair, para onde olhar e em que direção devem caminhar. Satisfeito, ele ordena: "Vamos ensaiar. Silêncio!"

A exigência não é um capricho do diretor. Um único microfone direcional capta as falas dos personagens e o som ambiente da cena. O aparelho é bastante sensível: responde a uma faixa de freqüência que vai de 20 a 20 mil hertz. Isso quer dizer que mesmo um pequeno ruído, como uma conversa sussurrada entre o camera-man e o iluminador, pode interferir na gravação. A grande vantagem é que a cena parece mais real. "Conseguimos captar sons que revelam detalhes do ambiente, como o barulho de passos ou a respiração ofegante dos personagens", conta o sonoplasta Octavio Lacerda.

Silêncio cortante
Os sons fortes também são registrados com fidelidade: o microfone suporta uma intensidade sonora de até 150 decibéis sem distorcer. É a mesma intensidade a que está submetido um espectador de um show de rock.

"OK, agora é pra valer", determina o diretor Bandarra, que corre para uma sala ao lado do estúdio para assistir à gravação em frente ao monitor. Mesmo a distância, é ele quem comanda a cena. Camera-men, coordenadores de estúdio e assistentes de produção acompanham suas ordens por meio de fones de ouvido. O resto do elenco ouve o diretor por um sistema de som. É dos alto-falantes que vem o grito que faz o burburinho cessar. "Gravando!", ordena Bandarra.

A claquete indica a seqüência em andamento: "Capítulo 86, cena 1". Petruchio, personagem de Moscovis, entra no Hotel Royal e dá início à ação. Um minuto de cena. Até agora, tudo bem. Nenhum erro. Contra-regras e iluminadores esboçam sorrisos, mas sabem que ainda não podem comemorar. Dois minutos. Tudo certo: a cena não foi interrompida nenhuma vez e já se aproxima de seu final. O diálogo entre Petruchio e Ezequiel termina. Por alguns instantes, o estúdio permanece em uma quietude cortante. O silêncio só é interrompido por uma única palavra que vem dos alto-falantes: "Valeu!", comemora o diretor.

Finalmente, a equipe se descontrai. Os camera-men e os assistentes de palco aplaudem e cumprimentam os atores. Afinal, não é sempre que uma cena sai assim, de primeira. Mas a comemoração termina logo. Em alguns minutos, todos já estão a postos novamente. E a novela dos bastidores se repete, na gravação de mais uma das 22 cenas do dia.

Refazendo o passado
A produção de novelas de época, como O Cravo e a Rosa (que se passa na década de 20) ou Aquarela do Brasil (anos 40), começa com uma pesquisa histórica do tempo em que ocorre a ação. "Procuramos referências para os cenários e figurinos em livros e publicações da época", explica a cenógrafa Juliana Carneiro.

A partir de fotos e desenhos, móveis, cortinas, estofados, almofadas e outros adereços são confeccionados um a um, com formas e materiais que procuram reproduzir o original. "Isso ajuda a dar mais realismo à novela", conta Juliana. Jayme Monjardim, diretor de Aquarela do Brasil, concorda com a cenógrafa. Para ele, o cuidado artesanal é essencial para recriar a época em que se desenrola a trama. "Não há indústria que faça isso."

O que acontece após a gravação

Imagem e som ganham tratamento especial antes de irem ao ar

Em uma novela, a gravação é só o início de um capítulo. Antes de ganhar as telas de TV, o som e as imagens captadas precisam ser selecionados, corrigidos e retrabalhados. É a chamada fase de pós-produção. Trata-se de um processo demorado: apenas a edição de um capítulo de 50 minutos pode levar mais de 30 horas. A tecnologia continua presente. Em todas as etapas da pós-produção, o computador é um elemento fundamental, desde a primeira edição até o arquivamento das fitas. Peneira grossa
A primeira fase da edição é chamada de offline. O editor seleciona as imagens que serão exibidas

Retoque nas imagens
As fitas que armazenam as cenas escolhidas vão para a chamada edição online. Lá, a seleção de imagens é refeita, e problemas de iluminação e colorização são corrigidos. Cada capítulo leva 24 horas na edição offline e de 6 a 8 na online

Pente-fino
Na ilha de sonorização, o áudio da novela passa por um pente-fino. Um computador regula digitalmente o nível de som captado e elimina os ruídos da gravação. Os técnicos também adicionam trilhas sonoras, dublagens e efeitos criados em estúdio

No ar, finalmente
Em média, para cada minuto de novela que vai ao ar, outros sete de gravação são descartados. As fitas não utilizadas são apagadas e podem ser usadas em outros programas. O capítulo exibido vai para o arquivo da emissora, que tem capacidade para 250 mil fitas

O robô-arquivista
O arquivo climatizado é controlado por um robô.
Acionado por computador elaborado por JUAREZ & Equipe, o robô localiza e busca cada fita do acervo da emissora.

De olho no monitor

Quando a gravação é "pra valer", o diretor deixa o estúdio e vai assistir à cena em sua sala. Nos monitores das quatro câmeras, ele confere os ângulos das tomadas, a iluminação, o enquadramento dos atores. "A cada dia, temos em média 25 cenas de estúdio e mais 10 externas", explica Walter Avancini, que divide a direção de O Cravo e a Rosa com Mário Márcio Bandarra.

O diretor da novela não fica sozinho. A seu lado, o diretor de corte seleciona qual imagem deve ser gravada. A cena que vai para a fita é mostrada em um monitor. Em outra sala, operadores de vídeo controlam a qualidade de cor, foco e iluminação da imag em. E um operador de áudio regula o som captado. Todos usam equipamentos de alta tecnologia.

Para Avancini, uma equipe de produção de novela aproveita melhor o tempo das gravações graças ao avanço tecnológico dos equipamentos, muitos dos quais usam recursos originais do cinema.




Anote:
TAVOLA, Artur da. A telenovela brasileira-história, análise e conteúdo. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1996.

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